O risco de racionamento parece baixo, mas a indústria, os técnicos e o governo não se entendem sobre o modelo
Dez anos depois de entrar em vigor, o modelo do sistema elétrico brasileiro voltou ao debate eleitoral. Em uma das piores secas ocorridas no País, o conjunto de hidrelétricas responsável por 67% da geração mostra capacidade de armazenagem limitada, resultado da decisão de construir usinas a fio d’água, sem reservatórios. Dos 20 mil megawatts de usinas hidrelétricas com entrada em operação entre 2013 e 2018, apenas 1% tem represas, segundo o Operador Nacional do Sistema. A necessidade de acionar as térmicas movidas a combustíveis derivados de petróleo e carvão obrigou o governo a ajudar com 20 bilhões de reais as distribuidoras para evitar o repasse imediato aos consumidores.
Não falta energia, a oferta está acima da demanda e o ONS prevê um aumento de 29% na capacidade de geração, equivalentes a 36,7 mil megawatts, até 2018 incluídas hidrelétricas (56%), eólicas (31%), térmicas a gás (5%), a usina nuclear de Angra III (4%) e o bagaço de cana (4%). Mas o custo da geração subiu consideravelmente, sem garantia de reversão a curto prazo. As termoelétricas, construídas para servir como fonte complementar, estão todas ligadas para as hidrelétricas operarem o menos possível e pouparem os reservatórios. E assim ficarão até chover o suficiente para normalizar o nível das represas. A participação das térmicas na geração passou de, aproximadamente, 10% em 2012 para 24%, por um preço de megawatt até 50% superior ao das hídricas.
Diante da falta de opções mais baratas em comparação com as térmicas para compensar as hidrelétricas quando há pouca chuva, governo e empresários da indústria defendem a manutenção do modelo e o aumento da participação de outras fontes de energia para reduzir a dependência das chuvas e elevar a segurança de suprimento. Outro grupo, formado por técnicos e especialistas, defende uma mudança estrutural no modelo com a definição pelo poder público dos projetos de usinas, a retomada da regulação dos preços da geração e o fim do mercado de curto prazo. No sistema atual, as distribuidoras informam a necessidade de energia e o governo prepara leilões para a contratação de projetos.
“Não existe outro mercado de energia no mundo com oscilação de 18 a 822 reais o megawatt-hora”, diz o engenheiro Roberto D’Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico. Segundo os críticos, os governos do PT mantiveram o critério de determinação do preço pelas regras de mercado herdado da gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Até os anos 1990, o governo estabelecia o valor pago ao investidor com base no custo da construção da usina, mais uma taxa de retorno. “A tarifa hoje depende de quem quer comprar, o custo fica escondido”, afirma Luiz Pinguelli Rosa, diretor da Coppe-UFRJ e presidente da Eletrobras de 2003 a 2004.
Segundo Mauricio Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética, responsável pelo planejamento nacional do setor, o regime de tarifa pelo custo adotado na década de 1970 não era vantajoso ao consumidor. “Mesmo no caso de a obra ultrapassar o valor previsto, havia garantia de retorno para o investidor e o custo adicional era repassado à tarifa. Com o critério de preço adotado em 1994, o valor definido no leilão é o mesmo a ser recebido pelo investidor, independentemente de variações, e isso estimula a sua eficiência.”
Para o diretor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, Ildo Sauer, a estrutura do modelo não permite a expansão necessária com as fontes corretas. “Como em 2001, a culpa não é de São Pedro”, compara o engenheiro, diretor de gás e energia da Petrobras de 2003 a 2007. Sauer critica o fato de o governo não contar com uma carteira de projetos básicos e licenças ambientais prévias de usinas para definir a oferta futura e qualifica a reestruturação adotada em 2004 como uma “tímida reforma”.
O governo defende a mudança implementada há uma década com a criação dos leilões, a vinculação dos investimentos à venda de energia às distribuidoras e a disponibilização de financiamento público. Essas medidas permitiram a expansão da capacidade de abastecimento acima da demanda (72,4% de crescimento da oferta de 2001 a 2011 ante 50,8% de aumento do consumo), o aumento da diversificação das fontes (a participação de hidrelétricas na matriz passou de 83% em 2001 para 67% em 2013) e a conexão das regiões por meio de linhas de transmissão. “Na década de 1990 não havia planejamento do Estado e o setor privado não foi capaz de orientar a expansão porque o risco de investimento era muito alto. Essa foi a origem do racionamento de 2001”, afirma Tolmasquim.
O modelo tem funcionado conforme o esperado e um racionamento está descartado, sustenta o presidente da EPE. Com um volume de chuvas em fevereiro deste ano na Região Sudeste correspondente a 39% da média histórica (em 2001, atingiu 73%), os reservatórios mantiveram o mesmo nível de 13 anos atrás por causa da utilização das fontes complementares inexistentes naquela época. Para Sauer, se o índice estiver abaixo de 60% da média histórica, o governo precisa lançar campanhas para a redução do consumo.
O risco de desabastecimento não é a maior preocupação dos empresários hoje. Incomoda o impacto financeiro sobre o setor e o aumento do custo da energia. Para Carlos Cavalcanti, diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a reserva de capacidade de geração tem se mostrado correta. “Existe um custo para se manter termoelétricas adicionais sem operar. É como um carro. Carregamos apenas um estepe, apesar de existir o risco remoto de os quatro pneus furarem.”
Especialistas e empresários concordam na crítica à escolha do governo por usinas hidrelétricas a fio d’água. A opção, baseada em restrições socioambientais, provoca uma mudança na matriz elétrica. Quando o consumo cresce, o volume armazenado nos reservatórios diminui proporcionalmente e se reduz a capacidade de geração do parque hídrico nos períodos sem chuva. Isso leva ao aumento da participação de outras fontes na base de geração, um choque no modelo que considerava complementar a participação das térmicas, hoje a segunda maior fonte. Segundo o diretor-geral do ONS, Hermes Chipp, o sistema se tornará cada vez mais dependente de térmicas. A Fiesp considera as usinas a gás e carvão a última opção para expandir o sistema gerador, depois da cogeração com bagaço de cana, energia eólica e nuclear, nessa ordem.
O custo maior da energia neste momento não vem apenas do acionamento das térmicas. A partir da Medida Provisória 579, de dezembro de 2012, que estabeleceu novas regras para a renovação de concessão de usinas hidrelétricas, algumas distribuidoras ficaram sem contrato com geradoras para cobrir sua venda e precisaram recorrer ao mercado de curto em busca de compensação. O problema é a variação do preço da energia comercializada neste mercado de acordo com a situação provocada pela baixa nos reservatórios. Quando o nível de água cai, o valor sobe, e quando está alto, diminui. Hoje está no teto de 822 reais o megawatt-hora.
O apoio financeiro às distribuidoras foi uma decisão da área econômica do governo para evitar o impacto inflacionário de um reajuste fora do cronograma de elevação das tarifas. Com leilões em dezembro de 2013 e abril deste ano, foi atendida 85% da necessidade das distribuidoras até o fim do ano, deixando-as com 350 megawatts a serem contratados no mercado de curto prazo. “As distribuidoras ficaram sem contratos suficientes por falta de diálogo sobre o teor da medida provisória e algumas geradoras não aderiram”, diz Luiz Vernando Vianna, presidente da Apine, entidade dos produtores independentes de energia.
Não há uma versão única sobre a crise e as suas causas, nem mesmo certeza acerca da sua existência, a julgar pela opinião de Cavalcanti, da Fiesp: “Não há crise no setor elétrico, apenas na imprensa, que está misturando tudo”. O tempo dirá. •
Dez anos depois de entrar em vigor, o modelo do sistema elétrico brasileiro voltou ao debate eleitoral. Em uma das piores secas ocorridas no País, o conjunto de hidrelétricas responsável por 67% da geração mostra capacidade de armazenagem limitada, resultado da decisão de construir usinas a fio d’água, sem reservatórios. Dos 20 mil megawatts de usinas hidrelétricas com entrada em operação entre 2013 e 2018, apenas 1% tem represas, segundo o Operador Nacional do Sistema. A necessidade de acionar as térmicas movidas a combustíveis derivados de petróleo e carvão obrigou o governo a ajudar com 20 bilhões de reais as distribuidoras para evitar o repasse imediato aos consumidores.
Não falta energia, a oferta está acima da demanda e o ONS prevê um aumento de 29% na capacidade de geração, equivalentes a 36,7 mil megawatts, até 2018 incluídas hidrelétricas (56%), eólicas (31%), térmicas a gás (5%), a usina nuclear de Angra III (4%) e o bagaço de cana (4%). Mas o custo da geração subiu consideravelmente, sem garantia de reversão a curto prazo. As termoelétricas, construídas para servir como fonte complementar, estão todas ligadas para as hidrelétricas operarem o menos possível e pouparem os reservatórios. E assim ficarão até chover o suficiente para normalizar o nível das represas. A participação das térmicas na geração passou de, aproximadamente, 10% em 2012 para 24%, por um preço de megawatt até 50% superior ao das hídricas.
Diante da falta de opções mais baratas em comparação com as térmicas para compensar as hidrelétricas quando há pouca chuva, governo e empresários da indústria defendem a manutenção do modelo e o aumento da participação de outras fontes de energia para reduzir a dependência das chuvas e elevar a segurança de suprimento. Outro grupo, formado por técnicos e especialistas, defende uma mudança estrutural no modelo com a definição pelo poder público dos projetos de usinas, a retomada da regulação dos preços da geração e o fim do mercado de curto prazo. No sistema atual, as distribuidoras informam a necessidade de energia e o governo prepara leilões para a contratação de projetos.
“Não existe outro mercado de energia no mundo com oscilação de 18 a 822 reais o megawatt-hora”, diz o engenheiro Roberto D’Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico. Segundo os críticos, os governos do PT mantiveram o critério de determinação do preço pelas regras de mercado herdado da gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Até os anos 1990, o governo estabelecia o valor pago ao investidor com base no custo da construção da usina, mais uma taxa de retorno. “A tarifa hoje depende de quem quer comprar, o custo fica escondido”, afirma Luiz Pinguelli Rosa, diretor da Coppe-UFRJ e presidente da Eletrobras de 2003 a 2004.
Segundo Mauricio Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética, responsável pelo planejamento nacional do setor, o regime de tarifa pelo custo adotado na década de 1970 não era vantajoso ao consumidor. “Mesmo no caso de a obra ultrapassar o valor previsto, havia garantia de retorno para o investidor e o custo adicional era repassado à tarifa. Com o critério de preço adotado em 1994, o valor definido no leilão é o mesmo a ser recebido pelo investidor, independentemente de variações, e isso estimula a sua eficiência.”
Para o diretor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, Ildo Sauer, a estrutura do modelo não permite a expansão necessária com as fontes corretas. “Como em 2001, a culpa não é de São Pedro”, compara o engenheiro, diretor de gás e energia da Petrobras de 2003 a 2007. Sauer critica o fato de o governo não contar com uma carteira de projetos básicos e licenças ambientais prévias de usinas para definir a oferta futura e qualifica a reestruturação adotada em 2004 como uma “tímida reforma”.
O governo defende a mudança implementada há uma década com a criação dos leilões, a vinculação dos investimentos à venda de energia às distribuidoras e a disponibilização de financiamento público. Essas medidas permitiram a expansão da capacidade de abastecimento acima da demanda (72,4% de crescimento da oferta de 2001 a 2011 ante 50,8% de aumento do consumo), o aumento da diversificação das fontes (a participação de hidrelétricas na matriz passou de 83% em 2001 para 67% em 2013) e a conexão das regiões por meio de linhas de transmissão. “Na década de 1990 não havia planejamento do Estado e o setor privado não foi capaz de orientar a expansão porque o risco de investimento era muito alto. Essa foi a origem do racionamento de 2001”, afirma Tolmasquim.
O modelo tem funcionado conforme o esperado e um racionamento está descartado, sustenta o presidente da EPE. Com um volume de chuvas em fevereiro deste ano na Região Sudeste correspondente a 39% da média histórica (em 2001, atingiu 73%), os reservatórios mantiveram o mesmo nível de 13 anos atrás por causa da utilização das fontes complementares inexistentes naquela época. Para Sauer, se o índice estiver abaixo de 60% da média histórica, o governo precisa lançar campanhas para a redução do consumo.
O risco de desabastecimento não é a maior preocupação dos empresários hoje. Incomoda o impacto financeiro sobre o setor e o aumento do custo da energia. Para Carlos Cavalcanti, diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a reserva de capacidade de geração tem se mostrado correta. “Existe um custo para se manter termoelétricas adicionais sem operar. É como um carro. Carregamos apenas um estepe, apesar de existir o risco remoto de os quatro pneus furarem.”
Especialistas e empresários concordam na crítica à escolha do governo por usinas hidrelétricas a fio d’água. A opção, baseada em restrições socioambientais, provoca uma mudança na matriz elétrica. Quando o consumo cresce, o volume armazenado nos reservatórios diminui proporcionalmente e se reduz a capacidade de geração do parque hídrico nos períodos sem chuva. Isso leva ao aumento da participação de outras fontes na base de geração, um choque no modelo que considerava complementar a participação das térmicas, hoje a segunda maior fonte. Segundo o diretor-geral do ONS, Hermes Chipp, o sistema se tornará cada vez mais dependente de térmicas. A Fiesp considera as usinas a gás e carvão a última opção para expandir o sistema gerador, depois da cogeração com bagaço de cana, energia eólica e nuclear, nessa ordem.
O custo maior da energia neste momento não vem apenas do acionamento das térmicas. A partir da Medida Provisória 579, de dezembro de 2012, que estabeleceu novas regras para a renovação de concessão de usinas hidrelétricas, algumas distribuidoras ficaram sem contrato com geradoras para cobrir sua venda e precisaram recorrer ao mercado de curto em busca de compensação. O problema é a variação do preço da energia comercializada neste mercado de acordo com a situação provocada pela baixa nos reservatórios. Quando o nível de água cai, o valor sobe, e quando está alto, diminui. Hoje está no teto de 822 reais o megawatt-hora.
O apoio financeiro às distribuidoras foi uma decisão da área econômica do governo para evitar o impacto inflacionário de um reajuste fora do cronograma de elevação das tarifas. Com leilões em dezembro de 2013 e abril deste ano, foi atendida 85% da necessidade das distribuidoras até o fim do ano, deixando-as com 350 megawatts a serem contratados no mercado de curto prazo. “As distribuidoras ficaram sem contratos suficientes por falta de diálogo sobre o teor da medida provisória e algumas geradoras não aderiram”, diz Luiz Vernando Vianna, presidente da Apine, entidade dos produtores independentes de energia.
Não há uma versão única sobre a crise e as suas causas, nem mesmo certeza acerca da sua existência, a julgar pela opinião de Cavalcanti, da Fiesp: “Não há crise no setor elétrico, apenas na imprensa, que está misturando tudo”. O tempo dirá.